"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Como ensinar (o) mal - ou, tomando partido


É fácil destruir uma geração, seduza-a com certezas absolutas. Para a psicanálise, somente é possível uma certeza absoluta sob forma de delírio. Isso porque a linguagem nos faz seres instáveis, daí que é impossível não sermos afetados pela palavra do outro. Essas palavras perturbam a condição narcísica que é condição estrutural do Eu. A precariedade do Eu vem dessa primeira condição política do ser humano que Freud chamou de solução de compromisso. Só há política porque há incertezas. Meu direito ao gozo esbarra sempre nos caprichos do outro, são as chicanas do desejo e da demanda.

No Seminário VI de Lacan lemos que, já na primitiva relação do bebê com seu objeto oral, encontramos a vontade canibal de destruição do outro. O sadismo está em jogo quando, para além da satisfação das necessidades, o bebê quer arrancar o mamilo com a boca e guardá-lo para si. É assim que, para Lacan, a separação não se produz entre a boca e o mamilo, e sim entre a boca/mamilo e o corpo da mãe. A educação começa quando separamos o bebê desse gozo de proprietário, iniciando o eterno processo de negociação que faz com que a demanda de gozo e política permaneçam em permanente tensão.

Ou seja, se deixamos prevalescer nossa vontade de gozo no campo onde queremos conviver com o outro, nos tornamos tiranos avessos à qualquer negociação política pois o outro não é escutado, ele é simples instrumento ou obstáculo para o meu gozo. É o que diz o losango do matema da fantasia de Lacan, $<>a.
Quais os impactos dessas constatações no processo de educação? Retomo aqui o início desse meu comentário, quando afirmo que uma geração se perde quando é afetada por dogmas irrefutáveis. É porque tudo que não pode ser questionado ou que não é assimilado por um processo interno de reflexão exige do sujeito uma crença delirante. O delírio não implica que o outro fale, o delírio ocorre quando, pouco importando o que o outro fale, o sentido já está decidido. É a matriz mesma do discurso paranóico. Na paranoia o outro se torna um mal a ser extirpado pouco importando o que ele tenha a dizer em defesa.

Quando promovemos uma educação que nega ao outro o direito de ser ouvido, de nos questionar e nos dividir com suas ideias diferentes, formamos seres submissos e preconceituosos. O medo do pensamento diferente os fará reféns das fórmulas já conhecidas. Eles não mais se arriscarão nas inovações e serão apenas repetidores das tradições. Eles não olharão para povos vizinhos e se aferrarão nos valores da família. Por fim, eles não ousarão ser, privilegiando a propriedade.

Essa questão é crucial diante do mal-estar atual na educação causado por projetos de lei que visam simplesmente acabar com o papel do educador, transformando-o em mero repetidor. Não precisa ser futurólogo para imaginar os efeitos, caso esses projetos sejam levados a cabo, sob a futura geração. Basta ouvir o discurso dos proponentes dessas leis para identificar em espelho o que acontecerá. E aqui não se trata nem de escola sem religião ou sem partido. Fui educado em parte num colégio religioso que não impediu que meu ateísmo fosse se construindo aos poucos, sem violências. Era uma boa escola em que havia espaço para questionamentos e inquietações. Lembro de uma professora de história (ah, essas matérias inúteis e subversivas!) que era o contraponto àquele ambiente rodeado de padres e hinos. Essa pluralidade ocorria porque, para além do temor de que alguns alunos fossem possuídos pelo diabo, a escola realmente se preocupava era com a educação e não com a reserva de ideologias.

Tempos difíceis, pensávamos que o aplastamento da nova geração viria da ritalinização do comportamento e eis que agora é o estado que pretende acabar com a inquietude e inovação de nossos alunos. Assim como Estamira dizia que o mundo estava sendo tomado por espertos ao contrário, digo que os proponentes desses projetos de lei que querem acabar com uma suposta doutrinação são na verdade doutrinadores ao contrário. Ao querer minar o importante papel de formador e transformador dos professores o que eles temem realmente é o debate de ideias, pois quanto mais os leio mais vejo que não há ideia alguma com base empírica, nenhum estudo aprofundado por traz, e sim conjecturas, medo, poder e intolerância, não necessariamente nesta ordem. Fosse o contrário não seria criando leis, e sim abrindo o espaço para uma longa pesquisa preliminar, com métodos e transparência - a universidade é muito boa nisso - a estratégica escolhida. O que percebemos em uma lida rasa dos projetos de lei que circulam atualmente sob a égide do movimento Escola sem Partido é que no fundo eles não parecem ser tão contra a doutrinação assim, contanto que a doutrinação seja a deles.

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