"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 22 de novembro de 2015

Sobre a alegria: uma ética de amor à vida

por Adriel Dutra


Imagem: The Joy of Life. Henri Matisse (1906)
"É espantoso o quanto falamos daquilo que nos entristece e pouco falamos daquilo que nos alegra. E se a gente tirar o dever à felicidade… não sobra quase nada além de vazio e tédio. Se tivéssemos a facilidade para falar das coisas que nos alegram assim como temos para falar das coisas que nos aborrecem certamente aquilo que a gente entende por relações sociais seria dinamitado. Que força é essa, de extraordinária vitalidade e potência criadora, que irrompe em nós e… Não é em busca dessas centelhas capazes de acender o fogo da vida que um homem abdica dos confortos gregários para se enredar pelas artes, pela filosofia, por modos insólitos e andarilhos de viver?  É preciso falar da alegria" 
A história tradicional do pensamento dedicou páginas e mais páginas sobre um mundo de ideais (ver Pensamento representativo, corpo, forças…), e se falou de alegria foi em algumas notas de rodapés. Fomos engordando uma consciência com fantasmas, culpas e faltas. E é aqui que chegamos a uma triste constatação, a de que a neurotização da vida é cada vez mais dominante enquanto a alegria dorme, calada, muitas vezes ao nosso alcance, por boa parte do tempo… e por vezes ela acorda, e é como mágica, e a gente sente algo pulsando dentro de nós, e o rosto vai se suavizando, o corpo se tornando bailarino, a língua se poetizando, e as moléculas se agitando em nós… e a gente sente sopros de delícia saltando pela pele, porque “o mais profundo é a pele” (Paul Valery), e é por aí que se começa a endoidecer de alegria.
Clément Rosset* diz que a forma de viver sem alegria é a neurótica, a tristeza não pode ser o oposto da alegria, esta não exclui aquela. Apesar de inúmeras as maneiras de se enredar pela neurose, nela é comum uma vida que sempre se adia pela esperança de algo que ainda não é – a felicidade?
A criança se alegra facilmente. Ela não se envergonha nem tem medo de viver. A criança cai, se machuca, fica triste… mas não faz disso um erro da vida. Mas aos poucos vai pegando uma das tantas vias da neurose e o olhar do outro passa a ser vigilante, o medo de viver vai ganhando força e a vida está prontinha para ser acusada por conta dos aspectos entristecedores que podem envolver a existência, e assim o corpo vai se fechando aos sopros vitalizantes da alegria. “O olho vê somente o que a mente está preparada para compreender” diz Bergson, e quanta feiura não se vê quando compreendemos a vida a partir de perspectivas neuróticas e paranoicas?
Ainda que tenhamos sido potencializados aos modos neurotizados de viver, nós não somos mais crianças. E agora queremos ir à contramão, porque é feio ser compassivo com a neurose, é feio demais fazer de um certo modo neurótico de viver até mesmo uma “cura”. Então é preciso falar de alegria, não porque é necessário capturá-la enquanto objeto, a alegria depende do encontro, se faz enquanto vive, é uma ética da vida, portanto, não é falar de um ponto de vista racional.

"A alegria como força ética da vida escapa a toda argumentação, falar da alegria aqui é enquanto dar passagem ao pensável. Tirá-la do impensável do qual ela permanece sepultada na tradição do pensamento é abrir rachaduras na crosta neurótica que fomos ganhando".
 Por que não se fala sobre a alegria? Freud, que nas ciências dá um certo corpo teórico a psiquê, não dedicou uma página à alegria! Mas não se trata de Freud. Pode se passar uma vida escolar e acadêmica inteira sem nunca falar de alegria, até mesmo em um curso de psicologia é muito provável que não se terá uma aula sobre a alegria. É espantoso o quanto falamos daquilo que nos entristece e pouco falamos daquilo que nos alegra. E se a gente tirar o dever à felicidade… não sobra quase nada além de vazio e tédio.

Por que não se fala sobre a alegria? Freud, que nas ciências dá um certo corpo teórico a psiquê, não dedicou uma página à alegria! Mas não se trata de Freud. Pode se passar uma vida escolar e acadêmica inteira sem nunca falar de alegria, até mesmo em um curso de psicologia é muito provável que não se terá uma aula sobre a alegria. É espantoso o quanto falamos daquilo que nos entristece e pouco falamos daquilo que nos alegra. E se a gente tirar o dever à felicidade… não sobra quase nada além de vazio e tédio.

Dizer que se é triste em tempos de dever à felicidade é uma anormalidade. Nós achamos que não somos tristes porque se tem uma maneira muito moderna e sociável de estar entristecido enquanto se abre a boca e mostra os dentes brancos e alinhados em forma de sorriso, chamamos isso de felicidade.

Daí é necessário distinguir alegria de felicidade, não enquanto uma guerra entre vocábulos conceituais e nem de exclusão de um termo pelo outro, o mais fundamental é a compreensão do que se está em questão, e com isso também retiramos a alegria dos lugares banais dos quais ela é encerrada. Falar de alegria não porque gente alegre é bacana, é positiva, é saudável, porque quem é alegre não morre de câncer e tem melhor qualidade de vida. Esses tons meio de deveres costumam pertencer à felicidade que é um termo inventado pela modernidade e está ancorado enquanto projeto orientado para uma vida qualificada através de universais e consagrada para o consumo – de carros, de abridores de garrafa, de práticas de ioga, de ideias, de… O futuro é o tempo da felicidade que é algo que está por vir carregado nos braços da esperança.
Se a alegria é uma força de criação a felicidade é uma força de inação que fica à espera de algo que nunca vem, e quando vem se esfarela frente à expectativa que se tinha. O vazio logo dá as caras e a produção da falta nunca cessa (ver Falta e culpa na sociedade do espetáculo).
Os inimigos da alegria são muitos, como é uma força inventiva e criadora ela não se presta à conservação e cristalização dos estratos neuróticos e paranoicos da sociedade. Já a felicidade não incomoda e desfila enquanto oferta por todos os cantos na sociedade do espetáculo, nunca se viveu tão secretamente a tristeza ao mesmo tempo em que mostrar uma vida apta a ser admirada e compartilhada abertamente nas redes socais é uma preocupação concreta. É importante que a felicidade não se efetive senão em pequenas doses, e que se faça de disponível para todos, assim se mantém o consumismo e o voluntarismo à servidão aquecidos. A alegria para o consumo seria uma insanidade, pois nela nada falta.
É preciso falar de alegria…

Alegria como força de um corpo que resiste – e resistir é criar – frente a um mundo onde as forças de destruição são em maior número, e as chances de entristecimento ou as vias de neurotização são imensas. Em termos gradativos de intensidades podemos pensar que são várias as maneiras alegradoras, desde uma leveza de viver até um endoidecer, endoidecer de alegria!
Beethoven compôs uma das mais belas sinfonias dedicadas à alegria. Seu hino ou ode à alegria é capaz de fazer os corpos efervescerem de amor pela vida. É belíssimo, é exuberante, é… é necessário imaginar um Beethoven que precisou enlouquecer de alegria para criá-lo. No entanto, foi necessário também calma para não espantar os devires de sofrimento. Antes da sua criação o compositor passava por sofrimentos e descréditos devido a sua surdez que piorara. Daí que uma sabedoria seletiva daquilo que nos acontece é fundamental para que forças alegres possam se compor conosco (ver Por uma ética das paixões alegres).
A alegria irrompe nos corpos. Alimenta-se do real, mas os sopros vêm de fora. Fluxos chegam do fora e entram pelos poros, e a gente sabe quando acontece, a gente sabe quando estamos tomados por alegria e não outra coisa. Nossos sentidos são arejados, pensamento e corpo entram em comunhão e o fogo da vida se acende em nós. Uma força dessas é da ordem da loucura, mas não da loucura psiquiátrica.
É uma loucura ativa, nela não estamos separados de uma potência criadora, portanto, endoidecer de alegria não se confunde com as exaltações dos estados de mania. A força de uma alegria também pode ser tranquila, calma, silenciosa e até mesmo uma solidão em comunhão com o mundo.
Se dizemos que a alegria pode ser da ordem da loucura é porque nos contrapomos à racionalidade de uma vida que aprendeu a fazer uma matemática do risco e gerir as probabilidades de se envergonhar diante dos encontros com o mundo, mas a alegria não se envergonha e não se apequena diante da vida.
Que real é capaz de aborrecer um corpo alegre? As vozes da lamúria silenciam. Não nos implicamos com a implicância do outro. Na alegria abraçamos os aspectos perigosos e problemáticos da existência, aceitamos a vida integralmente tal como ela é. Ao contrário da felicidade que nega, a alegria não exclui o sofrimento e a tristeza, abraça-os, pois sabe de sua potência criadora, é quando nos damos conta de que uma lágrima desce afagando o rosto diante da beleza de um mundo que se descortina aos olhos apesar de… e nada há de excludente em chorar de alegria que é uma das deliciosas maneiras da alegria nos tomar. São nos instantes de alegria que a gente deseja, apesar de tudo, apesar de tudo… viver incondicionalmente essa vida.
Um fôlego de vida nos toma, pulsamos junto a um mundo onde tudo pulsa, lufadas de forças ativas se apoderam de nós e endoidecemos, endoidecemos de alegria! Aqui estamos no auge de um instante que vale a pena ser vivido e gostaríamos de vivê-lo incontáveis e irrepetíveis vezes, e é aqui que a gente sente na pele como o amor fati nietzschiano pode ser vivido.
Instantes de alegria… instantes e não uma vida inteira de alegria. De que valem instantes de alegria em meio a tantas horas e dias e semanas de tédio que podemos contar em uma vida? Ahh o quanto valem essas centelhas que nos acendem! E não é em busca dessas centelhas, uma única centelha capaz de acender uma chama, ainda que seja por breves instantes, que um homem abdica dos confortos prometidos por uma felicidade gregária para se enredar pela arte, pela literatura, pela filosofia… por uma criação que nada vale ao mundo senão para si mesmo? Que momento de luminescência é esse na vida que faz com que um homem também possa ir à sepultura com um hino de alegria à vida nos lábios!
Não há saber que se presta a como ser alegre. Mas é possível traçar algumas linhas. O que a vida nos exige é presença, estar presente é estar aberto, e estar aberto à alegria enquanto força maior pressupõe um conhecimento trágico. O conhecimento trágico nos permite uma abertura maior às forças do fora, esse fora é composto de forças intensas das quais podem destruir, mas também é a fonte de uma potência criadora. A tradicional história do pensamento só vê perigo nessas forças, daí a captura, a esterilização das intensidades e a representação. Representar é também não se perder em um fora.
Ninguém endoidece de alegria no mundo representativo, que a pele torne permeável ao fora! Um conhecimento trágico nos permite escavar buracos, quem sabe abrir janelas, portas, enfim, aberturas possíveis na crosta dos hábitos, dos códigos, das técnicas, da consciência, da moral, da racionalidade e do utilitarismo que vai se acumulando e nos fechando às intensidades.
Por que alegria? Não porque queremos ser felizes e bem-sucedidos e repletos de amigos, em um mundo cristalizado de neurose e paranoia a alegria causa incômodos e espanta as maiorias, é por isso, e por ser uma força muito intensa que podemos até sentir medo da alegria. Alexander Lowen, por linhas reichianas, insistiu nesse pensamento na clínica. De fato, é necessário coragem, a presença que a vida nos exige é a coragem, coragem de estar presente na vida tal como ela é. Não se pode endoidecer de alegria sem coragem de se expor… ao fora, às forças entristecedoras, aos olhares vigilantes do outro, ao mundo – a alegria se dá no encontro –, mas que nunca se despreze uma sabedoria e uma prudência seletivas daquilo que nos acontece – ou um conhecimento das causas adequadas insistiria Spinoza -, pois as forças externas são sempre mais poderosas e em maior número. Se houver contágios e alianças a alegria aumenta, mas ela independe de reconhecimento e aceitação, quem nunca se pegou rindo sozinho, sem motivos e… meu deus, que alegria é essa que estou sentindo!
É preciso desacreditar na vida da felicidade e dar passagem à alegria enquanto uma ética criadora de vidas mais alegradoras. É preciso falar da alegria e até endoidecer de alegria. Alegria enquanto potência criadora e uma ética de amor à vida.

* C. ROSSET. Alegria – a força maior
Imagem: The Joy of Life. Henri Matisse (1906)



Fonte: http://letraefilosofia.com.br

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...