"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

segunda-feira, 29 de junho de 2015

AS PROFECIAS DO HOMEM-CONSUMO E O ESVA­ZI­A­MENTO DAS NECESSIDADES

PAULO BRABO, 25 DE JUNHO DE 2015

É o paradoxo das nossas vidas. Nunca tivemos tanta liberdade para moldar nossas vida do modo como queremos, mas nunca estivemos sujeitos a tantas pressões nos dizendo o que é desejável.
David RowanThe Times, 6 de setembro de 2003

Parece estar sufi­ci­en­te­mente demons­trado que quando o ocidente abandonou a noção (antes bastante popular) de que a ganância é um vício foi com a ardente aprovação da Reforma Pro­tes­tante – e pro­va­vel­mente por direta ins­pi­ra­ção dela. O que ainda não sabemos avaliar são todos os resul­ta­dos que essa mudança de paradigma lançou história adentro.
Mesmo antes da era da meca­ni­za­ção, alguns obser­va­do­res, avaliando essa for­mi­dá­vel transição, entre­vi­ram um futuro que por um lado é o nosso presente, por outro parecia para eles ter pouco de humano. Hoje em dia discute-se se um mundo que não acredita em Deus irá manter-se abraçado à ética; naquela época discutia-se se um mundo que acredita na ambição e no lucro pode alegar estar abraçado a Deus.
Quando a revolução indus­trial era menos do que uma promessa e a era da infor­ma­ção menos do que um sonho, esses sujeitos intuíram que a ganância, ali­men­tada pela tec­no­lo­gia, poderia se mostrar a chave da des­trui­ção do mundo e da mais fatal cegueira da história da humanidade.
Em seu A Vida de Fausto, de 1791, Friedrich Maxi­mi­lian Klinger coloca na boca de Satãalgumas dessas profecias:
Em breve, o perigoso veneno da sabedoria e da ciência con­ta­mi­nará a todos! Sua fantasia inflamar-se-á para criar milhares de novas neces­si­da­des. Loucura, dúvida e intran­qui­li­dade e novas neces­si­da­des se alas­tra­rão, e eu duvido que meu terrível reino possa acolher a todos que serão con­ta­mi­na­dos por esse veneno sedutor.
Este é Novalis (1772-1801), escre­vendo mais ou menos na mesma época, em seu A Cris­tan­dade, ou a Europa:

Uma pro­lon­gada asso­ci­a­ção de homens diminui suas incli­na­ções para a sua fé e para sua raça, e habitua-os a aplicar seus pen­sa­men­tos e esforços à tarefa de adquirir conforto material. As neces­si­da­des, bem como as artes de satisfazê-las, tornam-se mais complexas; o ambicioso requer tanto tempo para conhecer e ganhar habi­li­dade nessas artes que não tem mais tempo para a silen­ci­osa reunião de ideias e a atenta con­si­de­ra­ção do mundo interior. Se um conflito surge, seu interesse presente lhe parece repre­sen­tar mais; desse modo fenecem as belas flores de sua juventude, da fé e do amor, dando lugar aos frutos amargos do conhe­ci­mento e da possessão.
Acho espe­ci­al­mente relevante que esses autores tenham entendido, de seu posto há duzentos anos, de onde não tinham como saber o que hoje sabemos, que o segredo da vitória final da ganância residiria na mani­pu­la­ção das neces­si­da­des.
Novalis enxergou que neces­si­da­des mais complexas requerem mais recursos e mais tempos para serem satis­fei­tas. O mero tempo neces­sá­rio para apren­der­mos a nos tornar “pro­du­ti­vos” e a nos mantermos assim pode estar seques­trando partes muito legítimas da exis­tên­cia – porções e pausas de vida que perdemos intei­ra­mente de vista enquanto corremos atrás do vento. Antes dos engar­ra­fa­men­tos e dos shopping centers, Novalis entreviu que a tarefa de nos tornarmos con­su­mi­do­res eficazes pode estar nos sub­traindo o pri­vi­lé­gio e a tarefa mais essencial de viver.
Klinger olhou ainda mais longe, e na mesma página diz duas vezes que a chave da mani­pu­la­ção e da ruína da huma­ni­dade residirá na “criação de neces­si­da­des”. Antes da televisão de tela plana e do iPad, ele entendeu que o homem abraçará os pés do diabo para não ter de resistir ao apelo de “novas necessidades”.
Essas profecias falam de um momento no futuro em que os homens final­mente domi­na­riam a arte de trans­for­mar o que é supérfluo em neces­si­dade. Essa hora, natu­ral­mente, já chegou. Mais do que Novalis jamais poderia sonhar, apren­de­mos a validar nossa huma­ni­dade através daquilo que con­su­mi­mos. E, numa vertigem que levaria Klinger à loucura, a sub­sis­tên­cia dos sistemas do mundo abso­lu­ta­mente depende da criação e da divul­ga­ção insa­ciá­vel de novas necessidades.
Até mais ou menos recen­te­mente, a dura­bi­li­dade de um produto era encarada como valor: os produtos eram feitos e comprados para durar. Esse paradigma, no entanto, não fun­ci­o­nava a serviço de um capi­ta­lismo que depende do consumo sem pausa para sobre­vi­ver. As indús­trias apren­de­ram não apenas a lançar novos produtos (coisa que fizeram desde o começo), mas a encaixá-los num rigoroso programa de obso­les­cên­cia pro­gra­mada. Mesmo quando compradas para durar, as coisas passaram a ser feitas para não durar. Hoje em dia um produto apresenta falhas técnicas muito antes do que já foi con­si­de­rado aceitável, e o custo do conserto e da manu­ten­ção se mostra muitas vezes maior do que o custo da aquisição de um produto novo. O ver­da­dei­ra­mente notável nessa equação é que apren­de­mos a deixar de ficar indig­na­dos com isso, devi­da­mente aplacados pelas vantagens anun­ci­a­das do novo produto-necessidade.
O último estágio da transição de valor do durável para o ins­tan­tâ­neo ocorreu quando as indús­trias deixaram de ocultar o seu projeto de obso­les­cên­cia pro­gra­mada e passaram a anunciá-lo como evidência de com­pro­misso com a inovação. Hoje não há quem compre um equi­pa­mento ele­trô­nico des­co­nhe­cendo que daqui a um dia ou dois, talvez antes, um equi­pa­mento com mais (ou menos) botões estará ocupando o mesmo lugar na estante. Não há quem compre um iPhone n sem saber que este ano ainda deve sair on+1. A pers­pec­tiva da obso­les­cên­cia deixou de ser um problema e passou a ser um com­po­nente legítimo do produto, um de seus mais irre­sis­tí­veis atrativos.
E, como diz a piada, com esses dez por cento nós vamos vivendo. Os profetascontinuam falando e sendo sole­ne­mente ignorados, porque ouvi-los seria morder a mão que nos alimenta – ou mais pro­pri­a­mente, seria deixar de morder a mão que estamos con­su­mindo: a nossa própria. Ivan Illich explica além da dúvida que nos tornamos tão habi­tu­a­dos às soluções da tec­no­lo­gia que ficamos cegos ao fato de que estamos sendo apri­si­o­na­dos por elas. As soluções que deveriam tornar a vida mais fácil, bem como a obediente satis­fa­ção das neces­si­da­des novas e complexas que nos vende o sistema, pouco fizeram além de criar novos problemas, e crônicos. Entre eles estão as chamadas “doenças da opulência”, invenções do nosso sucesso em canalizar o nosso modo de vida de modo a perseguir a pros­pe­ri­dade – coisas como obesidade, depressão, ansiedade, hiper­ten­são e diabetes. Essas novas doenças aplacamos com novos remédios, é claro, porque seria pedir demais que nos rebai­xás­se­mos a mudar de vida. Para que o sistema continue rodando, nada nem ninguém – nem nossa própria qualidade de vida nem o esgo­ta­mento dos recursos do mundo – deve ser con­si­de­rado motivo legítimo para uma rea­va­li­a­ção de rumo.
http://www.baciadasalmas.com/images/bugs/bug042.gifQuando o supérfluo é visto como neces­sá­rio, deixa de ser neces­sá­rio falar em supérfluo.
Este relato faz parte do meu livro As divinas gerações. Des­ne­ces­sá­rio lembrar que você quer mesmo é comprar o livro impresso ou a versão digital.
Publicado ori­gi­nal­mente em 17 de maio de 2011


Fonte: http://www.baciadasalmas.com/

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