"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Amar não é uma aposta


Fábio Belo

Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em conseqüência da frustração, formos incapazes de amar. Isso acompanha mais ou menos os versos do quadro que Heine traça sobre a psicogênese da Criação:
Krankheit ist wohl der letzte Grund / Des ganzen Schöpferdrangs gewesen;  / Erschaffend konnte ich genesen, / Erschaffend wurde ich gesund. [A doença foi sem dúvida a causa final de todo anseio de criação. Criando, pude recuperar-me; criando, tornei-me saudável.]
Reconhecemos nosso aparelho mental como sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos. Sua elaboração na mente auxilia de forma marcante um escoamento das excitações que são incapazes de descarga direta para fora, ou para as quais tal descarga é, no momento, indesejável. (Freud, ESB, XIV, 101-2; )

Gostaria de usar essa passagem de “Para introduzir o narcisismo” para desenvolver, brevemente, uma ideia: amar não é uma aposta em contraposição ao amar contra o adoecer.
O que é uma aposta? Diz o Houaiss: “ajuste entre pessoas com opiniões diferentes acerca de um fato, que será averiguado posteriormente, devendo aquela que perder ou errar em seu julgamento pagar à outra o valor anteriormente estipulado”. Trata-se, como vemos, de um tipo de disputa, de luta entre dois. Não apenas isso: uma disputa que envolve um tipo de dobra ao derrotado: além da derrota, deve-se pagar algo pelo erro. A palavra “ajuste” na definição não é muito honesta: o fim da aposta não é bem um ajuste, mas uma imposição programada. Travestida de justiça / ajuste, a aposta legitima a imposição do que foi previamente estipulado. A honra dos apostadores, isto é, não colocar em discussão, após finda a aposta, suas consequências, é também um modo de impedir, legitimamente, que se reconverse sobre as condições da aposta.
Apostar tem um sentido muito positivo de se empenhar, acreditar, ter fé, para além do sentido básico de arriscar. O prazer da aposta passa pela confirmação de nossas crenças onipotentes sobre o mundo e o outro. De repente, a certeza de que as cartas virão, o cavalo correrá mais, o dado irá parar em tal número, a sorte virá. Apostadores, no entanto, não param de apostar mesmo depois que ganham. Seria pouco dizer que a motivação é apenas essa: vencer. Temos que pressupor também que a aposta coloca sobre a mesa a imagem arruinada de nós mesmos. Apostar é sempre correr o risco de perder. E essa perda pode muito bem ser atribuída ao azar, ao destino, a um outro. O arruinado pela aposta sempre terá o álibi do acaso para desresponsabilizar-se quanto ao seu desejo de tudo perder. É como se ele precisasse dessa cena de desapossamento, impotência radical de ver o dado em outra posição, o cavalo ficando para trás, as cartas que nunca chegam.
A aposta brinca com essa moeda cujas faces são a onipotência e a impotência. Sabemos como esses pares de opostos funcionam bem em nossa vida psíquica. O que significa então propor que uma relação amorosa é uma aposta? Que estamos sempre entre a onipotência e a impotência diante do outro. É justamente isso o que a psicanálise deseja evitar.
Voltemos à citação de Freud. O egoísmo é uma proteção contra o adoecer e adoecer significa sentir excitações “como aflitivas”, incapazes de serem dominadas. Em contraposição a isso, é necessário trabalho psíquico. Observem: o aparelho psíquico é um dispositivo que faz exatamente esse trabalho de “ligação” / “escoamento” dessas excitações. Jean Laplanche insiste nesse aspecto da pulsão sexual de vida. A tarefa dela é ligar a pulsão sexual de morte, pura “aflição”, puro desligamento… Em grande medida, podemos chamar de amor, trabalho de amor, essa tarefa de nos deixar menos aflitos. Entendam: a onipotência e o desamparo como faces da mesma moeda aflitiva…
E o que isso tudo tem a ver com a citação de Heine? O que isso tem a ver com criar?
Quero desenvolver a tese de que criar é o avesso de apostar. Criar, especialmente se entendido a partir de Winnicott, é dar lugar em si mesmo àquilo que é encontrado no mundo. Para Winnicott, o seio é criado na medida em que ele chega no momento em que o bebê o deseja. Nem muito antes, nem muito depois. E por chegar no momento suficientemente oportuno, o bebê é capaz de criar aquilo que encontra. Quanto mais desencontrada for a relação entre o objeto e o desejo, mais o bebê entrará na situação de aposta. Seja na vertente onipotente, seja na vertente do desamparo. Quanto mais no tempo for a relação, mais capaz será o bebê de amar o seio, isto é, dar conta de suas ausências, de seu modo de existir como independente de si mesmo…
Amar o objeto é ser capaz de tolerar e trabalhar sobre as diferenças entre o seio que inventei-encontrei e o seio que realmente existe. O seio que existe e estará sempre além e aquém daquilo que sou capaz de inventar-encontrar engloba a autonomia radical do outro e fundamentalmente seu inconsciente (algo que o próprio outro não controla). Quando amo não aposto na relação: convido ao trabalho e à criação conjunta de uma área intermediária entre a autonomia radical do outro e o que consigo criar-encontrar dele e nele. Essa área intermediária, transicional, é um espaço potencial. Isso quer dizer que algo da contingência está preservado pelo trabalho de amor. Esse trabalho, na medida em que é criativo, abre-se também ao que ainda não existe. Ao contrário da aposta, no entanto, a criatividade potencial não busca o excesso da onipotência e nem o caos do desamparo. Essa criatividade conjunta, amorosa, busca manter firme os contornos do eu e do outro para que ambos possam fruir, cada um à sua maneira e em seu tempo, desse terceiro espaço que apenas o encontro entre ambos faz aparecer. A aposta é o lugar do perder ou ganhar em detrimento do outro. O encontro criativo e amoroso é o lugar de, simultaneamente, deixar-se inventar pelo outro, inventar-se e inventar o outro.


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