"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

RAINHA MÁ - Fabrício Carpinejar



Eu voltei de viagem na segunda-feira e encontrei a pia cheia de louça, com todos os copos usados. Todos. Sem exceção.

Pratos e pratos sobre a mesa de apoio. Um absurdo de trastes domésticos. Parece que o armário fora baixado para perícia policial.

Estava assustado. Jurei que tinha entrado no apartamento errado. Ou que tinha sido corneado.

Perguntei para minha mulher, com o coração na mão.

— Houve festa ontem?

— Não, ela me respondeu.

— Não me mente… Como que não? Serviu um exército? Olhe a quantidade de louça para lavar.

— Vinguei minha vida de solteira.

— Como? Que doideira de se ouvir…

— Fui eu mesma que sujei tudo.

— Está brincando?

— Não, pegava sempre um copo diferente e não lavava. Era meu sonho. Passei a vida inteira me reprimindo, tendo que repor quando sujava. Quis um dia sem fazer nada. Sem detergente. Sem esponja. Sem pais.

— Um dia de princesa?

— Não, de rainha má.  Sem alguém me censurando. Sem alguém me controlando. Sem alguém me mandando fazer com a palavra ou mesmo com o silêncio contrariado.

— E acumulou a louça…

— E acumulei a alegria de não ser ninguém.

— E se sentiu melhor?

— Pude me sentir mal sem culpa. Não sei se me entende…

— Explica.

— Ter um dia vazio. Um dia nulo. Um dia que não fosse salvo. Um dia perdido. Um dia posto fora. Um dia meu.

— E?

— E cheguei em casa e atirei as roupas pelos corredores, sem dobrar, sem colocar na máquina, sem me importar onde iria pousar, sem ordem de queda e de procura.

— E?

— E assisti filmes sem parar. E não me importei onde largava a colher e o pote de sorvete. E onde me largava. E onde dormia. E onde acordava.

— E?

— E coloquei música alta e dancei Labirinto de David Bowie e realizei coreografias.

— Tudo sozinha?

— Sim, não diria sozinha, mais que sozinha: fora de mim.

— Que loucura!

— Loucura foi esperar esse momento.

— Isso é adolescência atrasada.

— Não, acho que é infância atrasada. Infância muito certinha. Muito controlada. De quem não aceitava decepcionar os outros. É a primeira vez que tenho um espaço meu, um espaço também para não ser, um espaço para desrespeitar, um espaço para ampliar minha liberdade.  Um espaço para não me assustar com o erro.

— Volto amanhã, concluí, conformado, e me dirigi de novo a porta.

— Por que vai embora, amor?

— Não serei eu a limpar sua vida de solteira. Mas prometo cuidar de sua vida de casada.

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