"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 20 de janeiro de 2013

Poder Ficar Sozinho Aumenta a Liberdade



  

A liberdade de cada um de nós pode ser pensada em termos amplos, relacionados à coragem para abandonar uma vida convencional de trabalho – renunciando a uma boa situação financeira, abrindo mão da posição social e, por vezes, da família – com o objetivo de fazer uma outra vida em outro local, longe de todas as pessoas que até então nos cercaram. Num caso assim radical, é claro que, apesar do fascínio que tal proposta possa nos provocar, muitos medos e freios íntimos nos impedirão de agir.
Quero tratar agora de algo muito mais simples: estou pensando nas pequenas restrições que a maior parte das pessoas aceita, de forma passiva, como se elas fossem inerentes a qualquer forma de vida em comum. O que leva um marido honesto a aceitar como natural a “bronca” que ele leva sempre que chega em casa mais tarde porque teve de ficar mais tempo trabalhando? Não seria razoável imaginar que é justamente numa condição como esta que a criatura deveria ser recebida com um zelo ainda maior, uma vez que provavelmente estará mais cansado – quando não contrariado?
O que leva uma mulher honesta a aceitar como prova de amor a “bronca” que ela leva sempre que o marido chega em casa antes dela, ainda que isto se deva ao fato de ela estar cuidando da sogra inválida? Qual a razão para que um filho adulto e responsável seja forçado a se submeter a regras que envolvam, por exemplo, horário para chegar à noite em véspera de feriado? Por que é tão ofensivo que este mesmo filho prefira ficar dormindo durante o horário do almoço dominical em vez de participar do mesmo? Qual o problema se ele for dormir muito tarde se é capaz de acordar cedo no dia seguinte e dar conta de todas suas obrigações? Por que o marido pode decidir que a mulher não deve sair com uma dada roupa, tida por ele como imprópria? Por que as mães sabem melhor se seus filhos irão passar frio sem o agasalho que elas insistem em fazê-lo usar? Por que o marido tem de “pedir licença” à sua mulher para ir, com os amigos, ao futebol no domingo?
Tantas perguntas de igual conteúdo poderiam ser feitas ainda, todas elas relacionadas às pequenas concessões que fazemos sempre com o intuito de evitar atritos com aqueles com quem convivemos. Temos a impressão de que não se trata de grave perda, uma vez que cada uma dessas renúncias envolve desejos menores. Porém, o que acaba pesando é o conjunto, a soma de pequenas concessões indevidas e desnecessárias.
Percebemo-nos de que estamos acumulando uma certa mágoa e frustração por tais limitações à nossa liberdade quotidiana justamente quando temos a oportunidade de ficar sozinhos por alguns dias.
É cada vez maior o número de pessoas que têm a oportunidade de viver tal experiência, antes pressentida como assustadora e provocadora de grande pânico – sim, porque crescemos com a idéia de que ficar só envolve graves dores e forte humilhação social: quem se sente com coragem para ir a um restaurante sozinho? A vivência é muito interessante, uma vez que, superados os primeiros momentos de medo, as pessoas passam a achar “o máximo” ficar com a televisão ligada pelo tempo que desejam, dormir com a quantidade de cobertores que sua temperatura corpórea pede, comer (ou não) na hora que bem lhe aprouver e assim por diante.
Muitas são as pessoas que, depois de um período de vida livre de tais obrigações grupais que impõem duras restrições à nossa modesta liberdade quotidiana, não se sentem mais em condições de aceitar tais regras. É mais ou menos assim: quando uma pessoa descobre que pode viver relativamente bem sozinha, que é capaz de superar o vazio e o pânico que podem surgir neste contexto, torna-se menos tolerante às exigências possessivas, ciumentas e, por vezes, invejosas impostas pelos elos afetivos usuais. Não é raro que tal mudança lhe chegue carregada de dúvidas de caráter moral: “será que estou me tornando uma pessoa egoísta?” É sempre bom lembrar que o egoísta não é o que cuida bem dos seus direitos e sim o que quer se apropriar do que não lhe pertence. Logo, é mais que legítimo o direito de uma pessoa não querer mais fazer as pequenas concessões próprias da rotina da maior parte dos grupos familiares e sociais.
A verdade é que fazemos muitas coisas contra nossa vontade apenas porque não nos sentimos com coragem para arcar com as conseqüências da nossa rebelião. Tememos a rejeição, as críticas diretas, o julgamento moral. Tememos o abandono e a condenação à solidão. Quando percebemos que existe um lado muito interessante no estar só, quando perdemos o medo de nos defrontarmos com nossa subjetividade e somos capazes de imaginar uma vida rica mesmo longe daquelas relações sociais que nos impõem limites indesejáveis, rebelamo-nos contra estas pequenas e múltiplas regras restritivas à nossa liberdade individual. Tornamo-nos mais livres de todo o modo, mesmo quando não rompemos nossos elos. O que acontecerá é a gradual mudança nas regras de convívio, que terão de se adequar aos novos tempos, tornar-se mais respeitadoras da individualidade e da liberdade que dela deriva. Impossível abrir mão de uma conquista tão prazerosa.

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