"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Meu irmão e eu



DARYL SHARP
Sozinho naquela noite, minha mente retornou ao tempo que passei com Arnold em Zurique. Viver com ele ensinou-me quase tanto sobre tipologia quanto ler Jung.
Arnold era um intuitivo delirante. Fui buscá-lo na estação quando ele chegou. Eu já o esperava há três trens. Fiel ao seu tipo, sua carta não era precisa. Fiel ao meu, eu era.
  Aluguei um chalé fora da cidade — informei-o a respeito enquanto apanhava a sua mala. O fecho estava quebrado e as correias já tinham desaparecido. Uma rodinha faltava. — São doze minutos e meio de trem e ele nunca atrasa. O chalé tem venezianas verdes e papel de parede de bolinhas. A proprietária é um amor, podemos mobiliar a casa do jeito que quisermos.
  Perfeito! — disse Arnold, segurando um jornal sobre a cabeça. Chovia. Ele não tinha chapéu e esquecera de trazer a capa de chuva, E calçava chinelo, santo Deus! Não conseguimos achar seu baú, pois ele o despachara para Lucerna.
  Lucerna, Zurique... tudo é Suíça para mim — filosofou.
Foi bastante divertido no começo. Nessa época não nos conhecíamos direito. Eu não sabia o que me esperava. Nunca estivera tão próximo de alguém tão... bem, tão diferente.
O tempo nada significava para Arnold. Ele perdia o trem, esquecia compromissos. Estava sempre atrasado para as aulas e quando, finalmente, encontrava a sala certa, não tinha lápis nem papel. Um dia tinha rios de dinheiro, no outro não tinha nada, pois não controlava as despesas. Não distinguia o leste do oeste e se perdia sempre que saía de casa. E às vezes dentro de casa.
  Você está precisando de um cão-guia — gracejei.
  Não enquanto você estiver por perto — retrucou sorrindo.
Ele esquecia o forno ligado à noite. Nunca apagava as luzes. As panelas ferviam e derramavam e o assado virava carvão enquanto ele, sentado na varanda, admirava o céu. A cozinha impregnou-se para sempre do cheiro de torrada queimada. Ele perdia as chaves, a carteira, as anotações de aulas, o passaporte. Nunca tinha uma camisa limpa. Com uma surrada jaqueta de couro, jeans de fundo frouxo e meias desparelhadas, mais parecia um vagabundo.
Seu quarto vivia na maior desordem, como se um furacão tivesse passado por ali.
— Eu fico louco só de olhar para você — cantarolava eu, ajeitando a gravata
diante do espelho.
Eu gostava de me vestir com elegância; isso fazia com que me sentisse bem. Sabia o lugar exato de cada coisa. Minha escrivaninha era bem organizada e meu quarto sempre arrumado. Eu apagava as luzes quando saía de casa e tinha um excelente senso de direção. Não perdia coisa alguma e era sempre pontual. Sabia cozinhar e costurar. Sabia exatamente quanto dinheiro tinha no bolso. Nada me escapava, eu me lembrava de todos os detalhes.
  Você não vive na realidade — comentei, enquanto Arnold se aventurava a fritar um ovo, Uma verdadeira epopéia. Primeiro não achava a frigideira, depois colocou-a sobre um bico de gás apagado.
  Não na realidade que você conhece — respondeu, um pouco magoado. — Diabo! — praguejou. Tinha se queimado de novo.
Lutei para gostar do Arnold, Eu queria gostar dele. Sua natureza expansiva e sua exuberância inatas eram encantadoras. Eu admirava seu ar de descuidada confiança. Ele era a alma de qualquer festa. Adaptava-se facilmente às novas situações. Era muito mais aventureiro do que eu. Em qualquer lugar que ia, fazia amigos. E os trazia para dentro de casa.
Ele era dotado de uma misteriosa percepção. Sempre que me via atolado na rotina, tinha alguma novidade a sugerir. Sua mente era fértil; fervilhava de novos planos e idéias. Seus palpites em geral estavam certos. Era como se ele tivesse um sexto sentido, enquanto eu me restringia aos cinco costumeiros, Minha visão era mundana — onde eu via uma "coisa" ou uma "pessoa", Arnold via a alma dela.
Mas constantemente surgiam problemas entre nós. Quando ele manifestava a intenção de fazer alguma coisa, eu o tomava ao pé da letra. Eu acreditava que ele queria dizer aquilo que tinha dito, que ele queria fazer aquilo que anunciara. Isso era especialmente perturbador quando ele deixava de aparecer na hora e lugar marcados. Acontecia com bastante freqüência.
  Olhe aqui — eu reclamava —, eu estava contando que você vinha. Até comprei os ingressos. Onde é que você estava?
  Tive que parar no caminho — respondia, na defensiva —, uma outra coisa que apareceu e eu não consegui resistir.
  Você é instável, não dá para confiar em você. Você é superficial. Vive nas nuvens, E nem tem uma opinião formada!
Mas não era assim que Arnold via as coisas.
— Eu só exploro as possibilidades — explicava quando eu pela décima vez o
acusava de ser irresponsável ou de, pelo menos, me enganar, — Elas não são reais
até serem expressas e, quando eu as expresso, elas ganham forma. Mas isso não quer
dizer que preciso me prender a elas. Alguma outra coisa melhor pode me acontecer.
Eu não fico amarrado às coisas que digo, Não é minha culpa se você toma tudo tão
ao pé da letra.
E prosseguia:
— As intuições são como passarinhos voando em círculos na minha cabeça. Elas
vêm e vão. Talvez eu as acompanhe, talvez não; eu nunca sei, mas preciso de tempo
para verificar o vôo delas.
Um dia, quando levantei, encontrei mais uma panela vazia chiando em cima do bico de gás aceso. Arnold se arrastava para fora da cama, procurando os óculos.
  Você viu o meu barbeador? — perguntou.
  Vá para o inferno! — gritei, furioso, agarrando um pegador de panela. — Qualquer dia desses você ainda vai botar fogo na casa. Nós dois vamos virar cinza.  E quando vierem recolher as cinzas numa urna para mandar para os nossos parentes, vão dizer "Pobrezinhos! Dois rapazes com tanto futuro! Pena que um deles fosse um paspalhão!"
Arnold entrou na cozinha no instante em que eu jogava a panela queimada porta afora.
— Ah, é? — disse ele. — Foi você que fez um jantar para a Cynthia ontem à
noite. Eu nem estava em casa.
Era verdade. Fiquei rubro de vergonha. Minha redoma se estilhaçou. A realidade que eu conhecia se expandiu.
  Desculpe — murmurei, humilde —, eu tinha esquecido.
Arnold bateu palmas e se pôs a dançar pela cozinha.
  Bem-vindo à raça humana! — cantava ele. E, como sempre, desafinado.
Só então percebi que Arnold era a minha sombra. Foi uma revelação. Isso não deveria ter sido uma surpresa porque já havíamos definido que nossos complexos eram radicalmente diferentes, mas foi. E me atingiu como um raio. Eu disse isso ao Arnold.
— Não se incomode — respondeu. — Você também é a minha sombra. E por
isso que você me faz subir pelas paredes.
Abraçamo-nos. Acho que esse incidente salvou o nosso relacionamento.
Tudo isso aconteceu há muito tempo. Nesses anos que se passaram, tornei-me mais parecido com o Arnold. E ele, mais parecido comigo. Ele já distingue a esquerda da direita e até aprendeu a fazer crochê. Sua atenção aos detalhes geralmente é mais aguçada que a minha. Ele mora sozinho e tem um jardim maravilhoso. Conhece o nome de todas as flores, em latim.
Enquanto isso, saio para jantar e às vezes vagueio pelos bares até o nascer do dia. Extravio papéis valiosos. Esqueço nomes e números de telefone. Perco-me numa cidade estranha. Exploro possibilidades enquanto as coisas se empilham à minha volta. Se não tivesse uma faxineira, eu logo seria soterrado pelo lixo.
Esses desenvolvimentos são as conseqüências inesperadas do fato de você chegar a conhecer a sua sombra e incorporá-la à sua vida. Uma vez que esse processo se põe em movimento, torna-se difícil detê-lo. Você não pode voltar a ser aquilo que era, mas o que perde de um lado ganha do outro. Você perde um pouco daquilo que foi, mas acrescenta uma dimensão que não existia antes. Onde você pendia para um lado, agora você encontra o equilíbrio. Aprende a apreciar aqueles que funcionam de modo diferente e desenvolve uma nova atitude em relação a si mesmo.
Vejo Arnold de tempos em tempos. Ainda somos "irmãos na sombra", mas agora as posições foram trocadas.
Conto-lhe minha aventura mais recente. Ele sacode a cabeça.
— Você, hein?, 'seu' grande vadio! — brinca, socando o meu ombro. Arnold descreve calmas noites ao pé da lareira, com uns poucos amigos íntimos, e diz que nunca mais quer voltar a viajar. Justo ele! Quando eu o conheci, não havia o que o fizesse ficar em casa.
— Você, hein?, 'seu' grande chato monótono! — brinco, socando o seu ombro. 

Fonte: AO ENCONTRO DA SOMBRA: O potencial oculto do lado escuro da natureza humana

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