"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 24 de junho de 2012

O declínio do viril

                                 

PROCURAM-SE HOMENS. OS INTERESSADOS APRESSENTAR-SE EM QUALQUER ESQUINA[1]
Gustavo Dessal (ELP-Madri)
CADÊ ELES?

 É o que dizem as mulheres jovens, as maduras, as coroas.
            Mulheres de toda condição coincidem em afirmar um fato que se repete em qualquer setor da vida social: os homens têm fugido em retirada.
            A imagem é quase a mesma em toda parte. Aos sábados à noite, legiões de mulheres formam pequenos grupos que povoam as boates, os restaurantes, as salas de lazer. São elas que assistem aos eventos culturais, se inscrevem em cursos, oficinas e saraus, por um lado para melhorar seus conhecimentos e por outro, para satisfazer a ingênua esperança de conhecer um homem.
Porém eles andam sumidos, desertado da conquista, abandonado a arte da sedução e parecem encontrar um gozo maior em seus sofisticados brinquedos eletrônicos. Seu olhar está demasiadamente pendente das telas de móveis, computadores, televisores e Play Stations e pouco disponível para o amor. A mulher-objeto, representação abominada pelas feministas, vai dando lugar ao homen-objeto, “caça” cada vez mais cobiçada pela sua escassez.
                As mulheres tomam posse dos diversos espaços da vida pública e são maioria em quase tudo. Os homens conservam ainda sua cota de poder na esfera política, porém, é só questão de umas poucas décadas para que as mulheres dominem também esse terreno que, durante milênios, foi patrimônio masculino. A legítima ascensão histórica das mulheres, celebrada publicamente como uma conquista da civilização ocidental, vem acompanhada de uma dúvida que as perpassa na intimidade: “Será que agora vivemos melhor que nossas avós ou nossas mães? Ter-nos liberado do jugo que assimilava nossa condição feminina à função de esposa e mãe, nos trouxe uma maior satisfação?”. Não há dúvida de que a possibilidade de escolher outro destino, que não o de suportar maridos incompetentes ou brutais, tem aberto a porta de um mundo que sempre lhes foi vedado, mas essa mesma porta as conduz a uma realidade na qual os homens ainda não concluíram a reprogramação dos seus esquemas mentais e fogem desnorteados de qualquer compromisso com o outro sexo, procuram consolo na homossexualidade, negam-se com obstinação a ser pais, agarram-se pateticamente cada vez mais a uma prolongação da adolescência, ou simplesmente repudiam qualquer mulher acima dos vinte e cinco anos.   A custa de luta, dor e tenacidade, as mulheres vem aprendendo, pouco a pouco, a viver de acordo com os novos tempos, enquanto eles resistem a abandonar suas antigas posições e só a contragosto aceitam compartilhar com elas as tarefas que tradicionalmente foram consideradas femininas. Os defensores do progressismo cultural são otimistas e estão convencidos de que será necessária só uma geração a mais, para que as diferenças de gênero se diluam definitivamente na grande paixão democrática da igualdade.



No entanto, as coisas não parecem tão simples assim, já que os homens não assimilam este processo sem apresentar, ao mesmo tempo, diversos sintomas, fundamentalmente inibições no campo da sua virilidade, que não somente afetam a eles mesmos mas também às mulheres. Uma mulher jovem dedica uma sessão de sua análise a expressar uma dupla queixa: por um lado, fica indignada quando na rua algum homem lhe dirige uma cantada, por outro, lamenta-se de que seu parceiro tenha se desinteressado quase por completo do sexo. Para além do que seus ditos revelam sobre seu inconsciente, não há dúvida de que os homens são cada vez mais censurados por praticar a sua masculinidade, sendo simultaneamente recriminados por não querer exercê-la. Encurralados, ambos os sexos, nesse paradoxo, os homens se movimentam na incerteza de não saber mais como ser, enquanto as mulheres tentam resolver uma equação que tem se tornado para elas a quadratura do círculo: conseguir que o gatinho que agora esfrega a louça e passa a roupa, continue sendo um tigre na cama.


O PAI... MORTO

O mundo ocidental desenvolvido manifesta um fenômeno que se estende lentamente, porém inexoravelmente: a desvirilização do macho, condenado a se converter numa espécie em extinção.
                A mudança nas mulheres tem afetado os homens de forma dramática, pouco acostumados historicamente a se ocuparem de sua identidade, já que ela era garantida de alguma forma pela posse de um órgão. Desatreladas da maternidade como identidade feminina por antonomásia, as mulheres têm diante de si um espectro maior de possibilidades. Os homens, pelo contrário, despojados de suas clássicas insígnias, se desorientam, ficam mergulhados no ressentimento, quando não na depressão. Essa criatura selvagem e bárbara, que vem praticando desde tempos imemoriais um indigno despotismo sobre o sexo feminino, deve pagar por seu terrível crime, com o sacrifício daquilo que sempre foi seu bem mais amado. A história aponta para ele seu dedo acusador e diante da falta de uma postura coletiva, alguns aceitam mansamente sua derrota mascando pílulas de Viagra, (alguns) outros se refugiam nas diversas modalidades da misoginia, e poucos contra-atacam com uma ferocidade que tem se convertido nos últimos anos em um problema do Estado. A violência contra as mulheres, que as estatísticas coincidem em indicar como uma atrocidade crescente, não é independente de uma época na qual os homens, não sem razão, experimentam as mudanças culturais como ameaça à sua identidade. Encurralados pelos avanços das mulheres, alguns não hesitam inclusive em empregar inclusive em empregar as armas para aniquilar um desejo inédito, uma vontade de ser à qual não estavam acostumados.

O que está acontecendo? Nada mais, nada menos que a efetuação histórica e progressiva de um fabuloso desmantelamento. O sistema patriarcal, que durante séculos funcionou como um marco de referência e ordenação do laço entre homens e mulheres, afunda de forma irremissível. Com seus méritos e com suas injustiças, o certo é que esse sistema designou um lugar preciso para cada sexo, assegurando uma série de vias institucionais e ritualizadas para perpetuar um dos fundamentos estruturais da cultura: o intercâmbio de mulheres entre os homens. Sem entrar no detalhe das numerosas críticas que têm sido dirigidas ao regime patriarcal, por excederem os limites e o objetivo deste artigo, não se pode negar que um dos seus maiores benefícios tem sido o de construir uma série de representações, que tinham por objetivo propiciar uma crença na presumida ordem natural das obrigações e responsabilidades próprias a cada sexo. Assim, que a tarefa do homem fosse atender as necessidades individuais, enquanto à mulher correspondia a sobrevivência da espécie, foi durante milênios, uma lei fundada numa ordem natural e incontestável, como por outro lado continua a ser em três quartas partes do planeta. Foi necessário esperar as sucessivas revoluções – ilustrada, industrial e tecnológica – para assistirmos à moderna desintegração da família como unidade social e à emergência de novas formas e fórmulas de laços familiares que demonstraram definitivamente a desvinculação das estruturas de parentesco e de aliança de toda razão argumentada nas necessidades biológicas do indivíduo e da espécie.
                O desaparecimento das representações tradicionais relativas às significações de gênero, impulsionadas a partir do século XX pelos movimentos emancipatórios, é possivelmente uma das transformações históricas mais importantes que a humanidade conheceu. Alguns expoentes do pensamento filosófico e sociológico feminino esquecem demasiadamente rápido o papel que a psicanálise desempenhou nessa mudança, não só pela extraordinária subversão que o conceito da sexualidade implica, como também inaugura um modo de participação intelectual feminina até então desconhecida nas restantes agrupações científicas. A psicanálise foi, provavelmente, uma das primeiras profissões que incorporou desde o seu surgimento um grande número de mulheres na qual tantas se destacaram notavelmente, a ponto de algumas delas encabeçarem as escolas analíticas mais importantes e ocuparem postos de hierarquia de máxima relevância na condução de suas instituições.

SALVE-SE QUEM PUDER

É muito instrutivo apreciar a que ponto alguns representantes femininos, inclusive os que durante anos enrolaram-se nas bandeiras das correntes mais radicais, começam a revisar seus postulados e a se interrogar sobre as consequências dessa profunda transformação social. Ninguém que possua um mínimo de honestidade intelectual pode deixar de se dar conta que, ao desaparecer a base de sustentação na qual se apoiava a práxis das identidades sexuais ou, pelo menos, ao desvelar-se a relatividade do seu fundamento, os homens e as mulheres da modernidade contemporânea acusam sintomaticamente uma desproteção ontológica sem precedentes. Os adultos são crianças que perderam as referências do seu sexo, órfãos num mundo onde o simbólico da paternidade é progressivamente substituído pela tutela dos peritos que delineiam uma codificação universal da conduta. Ainda que a tese lacaniana da não-relação não tenha por base em absoluto uma razão histórica ou social mas sim um desenvolvimento lógico do conceito freudiano de pulsão, o certo é que suas consequências clínicas nunca haviam se mostrado antes com a singularidade da época atual. Somos testemunhas de um paradoxo que em si mesmo constitui um sintoma do desconcerto existencial dos sujeitos. De um lado, os homens e as mulheres se redescobrem como seres privados de um saber sobre seu sexo, ou então, inseguros sobre a eficácia do saber que possuem e, portanto, declaram-se desejosos de aprender tudo. A sexologia, pseudociência da felicidade sexual, só poderia prosperar numa época em que os sujeitos se confessam ignorantes do gozo do seu sexo e reconhecem que nesse terreno têm que retornar à creche. Inumeráveis saberes oferecem um mundo de possibilidades a esses meninos grandes, aos quais tem que ser ensinado como praticar o coito, como levar a bom termo um parto e fundamentalmente, como se ocupar de uma prole cuja educação não se inspira mais na tradição pedagógica patriarcal. Mas, por outro lado, os meios de comunicação têm se convertido em transmissores de um novo evangelho que promete uma forma inédita de salvação: a genética.
Assim como a mensagem evangélica clássica, esta variante também não é nova, porém, promete um grande alívio: a possibilidade de confiar que nossos genes sabem tudo o que é preciso saber, desde o que determina o interesse de um sexo pelo outro sexo (inclusive pelo mesmo) até o que garantiria o bom desempenho da maternidade. Definitivamente a salvação consiste, neste caso, em nos devolver a uma natureza que tínhamos perdido. Como e quando se produzirá esta restauração de nossa condição humana, na qual viemos nos enrolando durante séculos, atribuindo-lhe determinações simbólicas, linguísticas e históricas, é algo que ainda está por se ver, porém é só questão de poucos anos a mais, segundo dizem, para nos regozijarmos com o reencontro de nossa primitiva felicidade de seres vivos.

Por qual razão, após o indiscutível avanço científico que supõe a eliminação do antropomorfismo na investigação da natureza, as ciências do comportamento empenham-se em animalizar o homem? Essa é uma pergunta que a filosofia e a psicanálise não podem desatender, já que implica um projeto social e a uma concepção do humano que ameaça o mais próprio da subjetividade: a diferença.

O individualismo moderno, origem de um pensamento sobre o ser que assentou a noção de diferença, propagou ao mesmo tempo o conceito da igualdade como um dos valores supremos da democracia. Esta tensão entre igualdade e diferença, que fez vibrar os três últimos séculos da história do Ocidente, se desfaz cada vez mais em benefício da uniformização da vida em todas suas ordens. As formas democráticas, que parecem asseguradas nos setores mais avançados do capitalismo ocidental, dissimulam um totalitarismo de novo cunho, que não se impõe mediante a brutalidade repressiva, mas sim através da infiltração paulatina do credo científico-técnico na totalidade da existência. A universalidade exigível pela ciência em todos os objetos aos quais se aplica e a exaltação da igualdade – não no sentido político e humanitário proclamado pela Ilustração, mas na uniformidade absoluta do indivíduo –, encontram uma aliança histórica sem precedentes. A psicanálise, que introduziu no pensamento sobre o ser a diferença irrecusável da sexualidade, constitui um fastidioso obstáculo no caminho do progresso.  Tanto seu método quanto sua doutrina teórica supõem um obstáculo no avanço contemporâneo da razão totalitária sobre a qual se estabelece o pacto entre as formas democráticas, capitalismo e tecnociências.


OS DISSABORES DA IGUALDADE

É evidente, pelo menos desde a perspectiva da psicanálise, que o sujeito moderno está atravessado por uma dolorosa divisão, entre sua identidade e sua diferença; que adere de maneira voraz à ideologia da igualdade, mas mesmo assim não deixa de sofrer na carne o tormento de sua exclusividade. O exemplo da vivência das mulheres na atualidade é eloquente: à medida que elas obtêm o reconhecimento da sua igualdade, as possibilidades para o exercício e o gozo da sua feminilidade deterioram-se. A paulatina, porém irreversível, detumescência dos símbolos sagrados que distribuíam o lugar e a função de cada sexo, tem feito surgir uma nova realidade: o perigo de extinção do macho. Mesmo que algumas feministas celebrem com trompetes e atabaques o advento de uma era sem homens, a maioria das mulheres começa a perceber as consequências mais bem pírricas da sua vitória.
                Como ser mulher num mundo desvirilizado? Ainda mais, continuará tendo sentido a noção de feminilidade, cujo encanto e sensualidade residiram desde sempre em seu mistério, na sua profunda ambiguidade, na equivocidade das suas máscaras e seus véus?
                Se afunilarmos um pouco mais o enfoque de nossa análise podemos chamar a atenção para uma diferença entre os países anglo-saxões e os que se inscrevem na tradição européia católica e latina. Nestes últimos parece se impor uma feminização da vida, como forma de reordenamento do gozo que tem ficado desprovido de seus referentes clássicos. Ser feminino é ser limpo e educado, respeitador das leis, controlado nos impulsos, tenro e sensível, diversificado na orientação da libido, cuidadoso com o meio e a natureza, atento à estética da própria imagem e à saúde do corpo, moderado no apetite carnívoro e disposto às excelências vegetarianas. Ser homem ou, melhor dizendo, persistir em querer sê-lo, é se condenar a ser visto como uma mancha no processo purificatório da civilização.
No âmbito anglo-saxão, ao contrário, a solução ao gozo apresenta-se de maneira mais radical: a assexuação dos vínculos entre os homens e as mulheres. Como tem sido expresso de forma magistral e comovedora por Coetzee, num dos seus romances, a sexualidade é uma desgraça que deve ser vigiada e no possível extirpada pela raiz.

O IDEAL DE UM MUNDO SEM DESEJO

Resulta notável a escassa atenção que os psicanalistas têm prestado ao caso Mônica Leminski, a estagiária que conseguiu por de joelhos ao chefe do império mais poderoso da terra. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos um presidente foi abatido a lamentações, no lugar de balas, e os filhos de Freud só dedicaram umas poucas linhas ao acontecimento, que reúne alguns dos traços principais da nova modernidade num país em que a estupidez e a inteligência, a liberalidade e o moralismo se misturam em curiosas proporções. A poderosa indústria da pornografia, liderada neste caso por uma jovem tentadora, penetrou no escritório oval da Casa Branca ocasionando uma estrepitosa catástrofe política. Os debates teológico-sexuais encheram as folhas dos jornais e os fólios do impeachment. Deus faz vista grossa diante da felação ou, ao contrário, o considera tão reprovável como um coito? Pensar em Deus enquanto o corpo entrega-se ao seu destino, reduz o pecado? De qualquer maneira, o importante ficou claro: nem sequer (o) César se libertará da histórica vingança feminina contra o poder dos homens e ainda que seu falo permaneça intacto, sua cabeça rodou pelo pó da incorreção política. Clinton, antes o homem do perpétuo sorriso, converteu-se no símbolo do que a América do Norte detesta acima de todas as coisas, inclusive mais que os crimes de guerra: um homem sem dissimulação?, quer dizer, um estuprador. Para algumas feministas, a heterossexualidade do macho é um dos maiores perigos da civilização atual, por portar no seu interior o mal de uma sexualidade bestial e condenável. Perseguir e erradicar a virilidade são um dever da política e o melhor modo de consegui-lo é o estabelecimento de estritas normas de comportamento que regulem detalhadamente as relações entre homens e mulheres. Se o presidente Clinton tivesse se ocupado de ler atentamente o código do Antioch College de Ohio, um centro universitário de prestígio reconhecido, possivelmente teria prolongado por mais alguns anos suas viagens no Air Force One. O dito código rege severamente as aproximações entre os sujeitos que pertencem ao campus, estabelece que toda intenção sexual deve ser explicitamente advertida e não poderá ser realizada sem obter o consentimento prévio do partenaire. Por outro lado, a aceitação de um dos passos que poderiam conduzir ao ato sexual, não supõe necessariamente um acordo a respeito do passo a seguir, de modo que o avanço no processo erótico requer uma negociação e recontratação constante. Conforme a tradição paranóica da sociedade anglo-saxônica, o contratualismo das relações sexuais se apresenta como a melhor opção para substituir o depreciado código clássico que regulava o vínculo entre os sexos. Condenados a abandonar os modelos tradicionais e na falta de auxílios numa ordem natural de conduta, os “cidadãos e cidadãs” alienaram suas tentações à coerção contratual, na ilusão de que uma rigorosa prevenção simbólica será capaz de absorver o real do sexo, o mal-entendido do desejo, a eterna equivocidade do encontro entre um homem e uma mulher. No fundo, o que se persegue é a extirpação radical de todo signo do desejo do Outro, desejo que, como sabemos, só pode subsistir sob os auspícios do mistério, da opacidade, da verdade como “meio-dizer”.
O sexualmente correto levado ao grau da obsessão paranóica propõe um mundo plano, um mundo no qual os seres humanos já não teriam inconsciente, um mundo em que os desejos são sabidos, ditos e submetidos às leis. Eros, transmutado em demônio, deve ser expulso da terra e no seu lugar reinará uma racionalidade soberana, garantia do absolutismo da igualdade ou, em seu defeito, da inquestionável supremacia da mulher. Estender a igualdade social e jurídica dos gêneros à vida amorosa é, por definição, um atentado à condição humana na qual a diferença constitui um fundamento essencial. Se, em nome da presumida higiene moral, pretendemos erradicar essa diferença, só conseguiremos incrementar o domínio da agressividade e o receio entre os sexos.

A BOA LETRA UNISEX

A crença de que a linguagem poderia chegar a suturar a divisão subjetiva produzida pelo real do sexo chega a extremos ridículos, quando não patéticos. Um exemplo interessante, pelas suas instrutivas conotações, é o atual emprego do símbolo @ como uma forma de reunir em uma letra só o “o” e o “a” dos dois gêneros. Se quiserem evitar suspeitas, é de bom gosto e tom que um professor ou professora advirta em notinha endereçada aos pais e/ou mães com motivo de uma excursão programada que “@s menin@s devem chegar ao centro provid@s da autorização assinada. Recomenda-se que @s menin@s venham com a roupa esportiva para que estejam confortáveis”. Que o símbolo da última revolução tecnológica possa assim mesmo servir para a condensação e unificação dos gêneros não deixa de convidar a uma reflexão sobre o poder da técnica como influência massificadora, e portanto dissolutiva da sexualidade como um dos terrenos mais privilegiados da diferença.
A correção dos novos códigos sexuais se espatifa contra o rompante das pulsões, dinâmica de um gozo que não se adéqua ao progresso da civilização e da cultura. A psicologia dos casais nos quais reina a violência doméstica mostra muito bem esse caráter “inapropriado” e “incorreto” de toda escolha amorosa. Se a atitude do macho violento nos repugna, a submissão e incondicionalidade de algumas mulheres que a suportam é surpreendente, e nos revela uma complexidade na dialética das condições amorosas que escapa ao senso comum e à idéia de prazer como bem soberano. Podemos legislar e sancionar essa violência, o que é social e humanamente exigível, mas é mais difícil regular o modo com que os gozos se enfrentam ou se complementam, indefetivelmente à margem do bem-estar político e individual.
Quando o imperativo da transparência política é extrapolado ingênua ou perversamente ao laço entre o homem e a mulher, a sobrevivência do desejo corre grave risco. A suspeita, a vigilância e a desconfiança recíprocas se convertem em atitudes dominantes e a proverbial guerra entre os sexos dá lugar a uma autêntica caça de bruxas do gozo. O terrorismo da igualdade aplicado de maneira irresponsável conduz à idiotice de uma sociedade composta de indivíduos que perderam o bom uso dos semblantes, e que por isso não sabem como se comportar.
A ironia da história, a secreta vingança do patriarcado agonizante, consiste em que as mulheres devem carregar agora o peso da sua liberdade, do mesmo modo em que suas congêneres do terceiro mundo, quem sabe se menos ou mais afortunadas, carregam sacos de lenha ou botijões de água sobre suas cabeças. É indubitável que na atualidade a atitude e a consideração face ao sexo feminino é um dos padrões de medida mais confiáveis na hora de avaliar o grau de evolução de uma sociedade. Neste sentido, um abismo sem reconciliação possível nos separa do mundo islâmico, imperturbável em suas práticas vexatórias sobre as mulheres. Embora a denominada liberação feminina do primeiro mundo ocidental constitua um passo indiscutível em benefício da dignidade humana, o certo é que as conquistas sociais e políticas não esgotam a problemática dos sexos. Qualquer resposta coletiva não deixa de ser em/na verdade uma ideologia, uma miragem de razão na qual o desejo se aliena e se mortifica. Para maior grandeza da espécie humana, as aventuras e desventuras da sexualidade resistem aos ordenamentos sociais e políticos, religiosos e doutrinários. A vida amorosa não é nem melhor nem mais simples para a mulher diretora de empresa, líder política, policial, caminhoneira ou engenheira ferroviária.
E menos ainda na atualidade, quando, além disso tudo, tem que se disputar os últimos exemplares de homem que vão restando.

Tradução: Marta Inés Restrepo (EBP-Bahia)




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